quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Organizando a Cultura: Dialogando com Gramsci, cantando com Paulinho da Viola.



Eu não vivo do Passado, o passado vive em mim.Paulinho da Viola




O golpe civil-militar de 1964 havia aprofundado a política econômica (de arrocho salarial e endividamento externo) iniciada desde o Governo do Presidente JK (Mendonça, 1986) Paradoxalmente, no chamado “Campo da Cultura” os movimentos de esquerda se faziam cada vez mais marcantes e se tornavam dominantes numa sociedade desigual e marcada pelas contradições sociais inerentes ao capitalismo, e que vivia sob a égide de um governo claramente de “direita.” De toda forma, os chamados “Festivais da Canção”, marcados pela presença da classe média contrária ao regime, ganhavam enorme força acentuando ainda mais essa dicotomia. Nesse contexto, polarizavam-se as tendências na MPB. De um lado, o CPC da UNE (centro popular de cultura), claramente inspirado em postulados isebianos, assumia uma tendência nacionalista contrária ao Imperialismo Yankee. O CPC adotava uma postura, de certo modo, elitista, na medida em que, num dualismo característico do pensamento das “vanguardas”, diferenciava “cultura popular”, ou seja aquela produzida pelas massas alienadas, a uma outra de “tipo autêntico”, isto é, aquela produzida por jovens intelectuais de sentimentos “nacionais e puros”, que, de modo quase “messiânico”, iriam resgatar as massas e mostrá-las o verdadeiro caminho. De outro lado estavam os tropicalistas, que criticavam amplamente os costumes da sociedade moralista brasileira e que incorporaram as mais diversas tendências externas. Uma forma de canção plenamente de acordo com o momento que nossa economia passava de “abertura” do mercado para o capital estrangeiro. Segundo Eduardo Granja Coutinho, professor e pesquisador da ECO-UFRJ, “compreendendo a música popular como fato eminentemente estético, o tropicalismo opera um deslocamento da questão política.” (Coutinho, 2002).




Nesse mesmo momento, surge um compositor “jovem de grande valor” que não seguia a risca essas tendências majoritárias na época: Paulinho da Viola. Em primeiro lugar para compreender tal questão é preciso pensar Paulinho da Viola como um verdadeiro “organizador de uma cultura”, como um “intelectual orgânico”. Valho-me aqui da noção de Gramsci de intelectual, como aquele que organiza a “vontade coletiva”, recuperando as tradições e valores de uma cultura efetivamente não hegemônica (Gramsci, 1978). Toda a carreira de Paulinho da Viola é marcada por uma profunda articulação entre ele a comunidade subalterna do “samba”. Dessa forma, a práxis de Paulinho sempre se deu no sentido de resgatar as tradições de uma comunidade não hegemônica, sistematizando um conhecimento contrário à lógica hegemônica do capital. Por conseguinte é possível aferir que Paulinho efetivamente adotava uma posição de luta e resistência, uma posição “nacional-popular”. Para exemplificar tal questão podemos tomar aqui dois momentos fundamentais da carreira do compositor: a fundação da “velha guarda da Portela” e o importante papel na reconstituição do grupo de choro Época de Ouro, que demonstram claramente a importância que o compositor dá a memória das comunidades. De todo modo é preciso compreender como Paulinho da Viola pensa a própria historia para verificar elementos mais concretos de resistência. A tradição para Paulinho não é entendida como algo puro e que, portanto, deve ter a sua essência conservada. Na verdade, a tradição não é estática, mas sim algo que se refaz constantemente. Num momento duplo de dialética, o velho e o novo aparecem como elementos fundamentais de Paulinho da Viola. Se, por um lado é herdeiro das “bambas” do Estácio, como Ismael Silva e Noel Rosa, por outro compõe músicas utilizando um sintetizador ao lado de compositores como Caetano Veloso. O passado e as tradições populares, para o nosso sambista, são efetivamente vivos no presente. Conservação da memória popular e culto ao passado são efetivos antônimos. Citando Eduardo Coutinho, “para Paulinho popular não é sinônimo de massificante ou folclórico; popular é, fundamentalmente, o não hegemônico, o que está à margem (...) A defesa do samba e do popular como linguagem de expressão da vida comunitária caracteriza sua atividade como músico e como “organizador da cultura.”




Nesse sentido, podemos entender a gravação do LP Zumbido, em 1979, como um marco efetivo de resistência negro-proletária do sambista. Dirá Paulinho que Zumbido é uma “coisa que incomoda”, nesse LP “a afirmação do samba carioca como fator de um grupo social está expressa claramente, ao nível de conteúdo, enquanto consciência política” (Coutinho, 2002). Ainda buscando exemplos de resistência na obra do sambista, destacamos as canções “Uma história diferente”, que conta a história de um negro “diferente”, ou seja, que busca afirmar a sua cultura, e a letra de “argumento”.





Tá legal, eu aceito o argumento


Mas não maltrate o samba tanto assim


Olha que a rapaziada está sentindo a falta


De um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim


Sem preconceito ou mania de passado


Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar


Faça como um velho marinheiro


Que durante o nevoeiro toca o barco devagar



Nessa canção, Paulinho a um só tempo, critica tanto aqueles que visam a conservação da “essência do samba”, ou seja, os nacionalistas conservadores, quanto aqueles que buscam assimilar a-criticamente uma forma americanizada de música. Ao contrário de ambas as tendências, Paulinho atua numa postura verdadeiramente “nacional-popular”, porque demonstra “a capacidade de distinguir entre o válido e o não válido no seio do patrimônio cultural universal” (Coutinho, 2005). Dialoga com aquilo que é externo, “aceitando o argumento”, da mesma forma que busca preservar um patrimônio histórico local, “quando a rapaziada sente a falta”.
Paulinho atuou no sentido de propor uma estratégia própria de resistência. Eu diria ainda mais: uma estratégia gramsciana. Como nos mostra o sábio Eduardo Coutinho, Paulinho leu os escritos do filósofo da Sardenha. Recuperar valores e costumes não hegemônicos e a intima articulação entre intelectuais e povo são valores que norteiam tanto a reflexão gramsciana quanto a práxis do sambista da Portela. Em meio a um diálogo entre “elitistas” e “entreguistas” Paulinho foi a voz que cantou diferente.





COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaio sobre idéias e formas. Rio de Janeiro, Editora DP&A, 2005.
COUTINHO, Granja Eduardo. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2002.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo: Civilização Brasileira, 1978.
MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e Economia no Brasil: opções de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Graal,1986.




Texto do amigo Luis Guilherme Porto Rocha postado 19/02/2007 na Revista "A Roda" do curso de História da Universidade Federal Fluminense. Segundo ele muitas de suas opiniões colocadas aqui se modificaram. Segue abaixo a capa do CD Zumbido:






Os amigos que o quiserem me enviem um e-mail declarando o interesse. Abs!

Um comentário:

Matheus Rodrigues disse...

Muito boa a reflexão a respeito da "modernização" da música brasileña!!
Inclusive acho que esse tipo de reflexão nos ajudará em muito ao estudarmos essa elitização do samba, num processo muito parecido com o que o funk sofre hoje em dia.